segunda-feira, 22 de junho de 2009

Arno Blass

200 SOLISTAS EM URUGUAIANA
Relembrando Leo Schneider







Arno Blass
Engenheiro Mecânico
Professor Titular (aposentado) da UFSC)
Membro da Academia Nacional de Engenharia




Logo depois da Revolução de 30, Getúlio Vargas, guindado à presidência do Governo Provisório, indicou Francisco Campos para implantar o Ministério da Educação e da Saúde Pública, setores que até então eram geridos pelo Ministério da Justiça. Campos designou Heitor Villa Lobos para ocupar a Secretaria de Educação Musical e Artística do recém criado ministério. E o compositor logo viria a dar sua contribuição pessoal à reforma do ensino que o ministro introduziria em 1931, com a inclusão da matéria Canto Orfeônico nos currículos dos cursos primário e ginasial (que subsistiria por mais de três décadas, até ser lamentavelmente eliminada na onda das reformas do ensino introduzidas por um novo governo de exceção).

O que se viu, então? Na maioria dos colégios os professores, muitas vezes até por falta de preparação especializada ou de condições de trabalho, limitavam-se a cumprir perfunctoriamente o que a lei impunha, repetindo exaustiva e monotonamente o repertório de sebentas cartilhas oficiais ou oficiosas. Mas surgiram também aqueles professores abnegados que, batalhando arduamente para superar todas as limitações, procuravam dar realização prática ao espírito da lei, buscando trazer a seus alunos alguma formação musical mais efetiva.

Só cheguei a assimilar e compreender isto bem mais tarde, como parte de meu processo de formação, como ser social e, particularmente, como interessado na história da educação no Brasil. Há mais de meio século atrás, quando cursei Canto Orfeônico, como ginasiano (1951-54), no Instituto Porto Alegre, o querido IPA de minha juventude, eu naturalmente desconhecia estes pormenores históricos. Mas não foi preciso muito tempo para me conscientizar de que, como aluno de Leo Schneider, eu participava de uma minoria privilegiada, que tinha oportunidades que contemporâneos meus, que estudavam em outros educandários, não tinham.

Toda quarta feira subíamos, meus colegas e eu, as estreitas escadarias que levavam ao mezanino do recém inaugurado Auditório Oscar Machado para nossa aula semanal com Leo Schneider, a quem chamávamos simplesmente de Maestro. O mezanino possuía uma série de degraus largos, em arco, precedidos de uma plataforma horizontal. Sobre os degraus estavam fixadas as poltronas em que sentávamos. Na plataforma anterior ficava um piano vertical junto ao qual o Maestro sentava. Quando o auditório era usado para outras finalidades, o piano constituía um entrave à visibilidade do palco, para aqueles que ficavam logo atrás. Mas para as aulas do Maestro, sua disposição era ideal, permitindo que ele ficasse próximo aos alunos, facilitando a comunicação. Além disso, a ocupação apenas esporádica do mezanino permitia que o piano ali fosse deixado, de uma semana para outra, sem maiores transtornos.

E ali ensaiávamos seus oratórios (dois deles, “São João Batista” e “Jesus Nazareno”, durante aquele quatriênio). As preleções do Maestro se faziam quase como uma conversa informal, discorrendo sobre a estrutura de um oratório, situando seu conteúdo no contexto da Bíblia, e introduzindo os vários temas corais. Quando dominávamos o oratório do ano em sua totalidade, fazíamos dois ou três ensaios em conjunto com as meninas do Colégio Americano, no auditório deste educandário. Ao fim do ano, o coroamento de toda a labuta: uma apresentação pública no velho Theatro São Pedro, precedida de um ensaio no local, com orquestra. Era o momento em que, pela primeira vez, ouvíamos completa a obra para a qual tanto nos havíamos preparado. Era, também, de certa forma, um momento de glória para todos nós: cantar no São Pedro... Não era para qualquer um!

No ano seguinte, começávamos com outro oratório, mas sem abandonar o esforço do ano anterior. De quando em vez surgia uma excursão para apresentações em cidades do interior do Estado, de forma que era sempre oportuno manter a desenvoltura na interpretação daquele oratório que já conhecíamos. Foi assim que visitamos Uruguaiana, viajando nos vagões da velha Viação Férrea, puxados pela não tão saudosa Maria Fumaça. E em lá chegando, nos divertimos com um jornal local, que anunciava nossa apresentação falando em “duzentos solistas”...

Outras preocupações nos assoberbavam quando se aproximava o final do ano. Tínhamos de prestar um exame final. O Maestro preparava e nos distribuía uma folha mimeografada, apresentando, em suas duas faces, um texto datilografado com o menor espaçamento possível, abordando vinte pontos, de sua livre escolha, cobrindo tópicos específicos e bastante variados da história da Música. Um deles falava em troubadours medievais, outro em Bach (não poderia faltar, evidentemente), algum outro em Verdi ou Wagner... Não faltavam os tópicos de música brasileira: José Maurício, Carlos Gomes, Catulo da Paixão Cearense... Então, durante duas ou três aulas, o Maestro discorria sobre cada um dos tópicos, indo um pouco além do parco texto da folha mimeografada, estabelecendo comparações e noções sobre o desenvolvimento da história da Música.

E assim nos preparávamos para o exame, em que nos era cobrado, a rigor, apenas o conhecimento do material contido no texto mimeografado. Para os que apenas queriam passar, era uma moleza. Para outros (eu incluído), um mero ponto de partida, um aperitivo para despertar a fome pelo conhecimento musical. Em dias em que tudo era muito mais difícil, levei quase duas décadas para conseguir saciar uma curiosidade então despertada, a de ouvir José Maurício e me deleitar com sua música coral. Hoje, com a internet, escuto-a quando quiser (e o faço com freqüência), indo direto ao youtube. E a cada vez que o faço, lembro-me de Leo Schneider.

Eu já trazia interesse por música e alguma cultura musical de casa, transmitidos por meu pai. Mas participar das apresentações de dois oratórios de Leo Schneider, de ouvi-lo, de com ele conviver, mesmo que na mera situação de aluno da matéria Canto Orfeônico, foram importantes para atiçar minha curiosidade, para me impelir à leitura de textos sobre música, de fazer da música erudita uma necessidade de vida. E hoje, em retrospecto, posso dizer: fui enriquecido com isso.

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